quarta-feira, 29 de abril de 2009

A NOITE DE EPICURO - (Conto) por Sergio Brandao

A Noite de Epicuro

Conto: Sérgio Brandão

São Paulo, Agosto de 185l. O inverno consumia a cidade impiedosamente. Sofrimento e desolação assolavam os miseráveis; tremulavam como marionetes das intempéries a circularem em torno de fogueiras improvisadas, todos os que na vida não tiveram a mesma sorte dos seus vizinhos abastados. As primeiras levas de imigrantes começavam a modificar o perfil da cidade. Destes, muitos logo fariam fortuna nas novas terras férteis ao cultivo do café; outros encontrariam vicissitudes ainda piores do que as que os impeliram a buscar o desconhecido em plagas tão distantes. As pessoas se esbarravam indiferentes e entediadas nas precárias calçadas da cidade, por onde transitavam pais de família e seus segredos, padres com voluptuosos olhos libertinos, mulheres lascivas, ébrios, beatas a blasfemar com seus terços na mão e estudantes vadios em busca de algo que os provasse vivos antes que o tédio confinasse suas almas mortas em seus corpos vivos.
Richard fazia parte desta última categoria; era o primogênito de uma família de ingleses donos de uma chácara que também servia como República de Estudantes e centro comercial local. Havia chegado no Brasil há cinco anos, devido à insistência de sua mãe, brasileira, que já não agüentava mais de saudades da terra natal. Morava na chácara com os pais e ajudava-os nas raras horas de folga do curso que fazia na Faculdade de Direito de São Paulo. Lá conheceu Manoel Antônio, o Maneco, que veio morar na Chácara dos Ingleses por sugestão de Richard. Uma grande amizade desenvolveu-se entre os dois, tendo como combustíveis dois fatores primordiais: o apetite insaciável de Maneco por línguas estrangeiras (falava latim, inglês e francês com desenvoltura) e o gosto de ambos pelos poetas românticos. Maneco descobriu que além de praticar Inglês com Richard aprendia cada vez mais sobre Shakespeare, Lord Byron, Goethe, Alfred Musset dentre outros adorados por aqueles jovens de 20 anos acometidos pelo que chamavam de “spleen”, uma profunda melancolia, acentuada por um tédio quase obsessivo a temperar suas almas; receita esta que servia como lenha para a fogueira de seus eflúvios poéticos de rara beleza lírica, permeados pela adoração do sinistro e da morte, a musa preferida de seus poemas.
Maneco já havia passado para o papel muitos de seus dons poéticos, ao passo em que Richard era poeta instantâneo, tinha uma beleza nata para expressar tudo que se passava no fundo de sua alma ditosa, principalmente quando falava longa e repetidamente sobre Charllote, uma francesa de 22 anos por quem se apaixonou perdidamente, após tê-la conhecido em sua casa onde recebia seus escolhidos para noites regadas a vinho, haxixe e saraus acompanhados pelo seu piano de caldas que parecia uma fábrica de deleites quando ela interpretava Chopin, seu músico predileto. Maneco sentia-se amigo íntimo de Charllote; sabia dos seus amores, sofrimentos e delícias de tanto ouvir Richard contar-lhe cada detalhe que descobria sobre sua vida , embora não a conhecesse ainda pessoalmente.
Uma noite conheceram-se nas imediações da Faculdade, onde ela às vezes esperava Richard e dirigiam-se á casa dela onde lhe prestava os mais caros favores.
- Hey, Charllote! Love of ma vie. Comment vas you darling?
- Hereux comme the flowers beneath the rain!
Faziam uma mistura de inglês com francês que intrigava Maneco visivelmente.
- Maneco, esta é Charllote, ma raison d’etre.
- Enchanté! - Respondeu Maneco sem conseguir disfarçar o encantamento que Charllote lhe causara. Loira de uma alvura angelical, com suaves olhos azuis que iluminavam a noite esfumaçada de brumas; era como se encarnasse a musa do ideal romântico.
- Que’est ce que nous allons faire ce soir? - Perguntou com um ar avoado que lhe acrescentava um charme dos diabos.
- Não sei ainda, o Maneco acabara de me convidar para finalmente conhecer de perto a tão falada “Sociedade Epicuréia”. Respondeu Richard já um pouco enciumado pelos olhares de Manoel para Charllote.
- Societé Epicureica? Que’est ce que ça veux dire?
- Trata-se de um grupo de poetas que acreditam piamente que acabarão com o tédio do mundo através de suas reuniões cada vez mais santificadas pela poesia e endemoniadas pela bebedeira e pelas orgias dos seus membros, se intitulam seguidores de Epicuro, filósofo grego que pregava a supremacia do prazer... - Explicou Richard lentamente para que Charllote entendesse.
- Trés Interressanté. Cést le meilleur chose pour faire. Quando irremos?
- Ce soir, sexta-feira, lua cheia das noites de agosto, consigo ver Pan, Baco à enfeitiçar os corações vagabundos. - Os olhos verdes de Richard brilhavam ao exaltar-se.
- Às vezes duvido das suas origens, Richard, nunca vi tamanho entusiasmo num Europeu antes. - Manoel respondeu com surpresa, pois se acostumara com o amigo quase sempre taciturno e melancólico, embora não fosse esta a primeira oscilação radical de humor que testemunhara no inglês.
Saíram com destino à taverna do Sturn, um dos lugares mais freqüentados pelos estudantes da Sociedade Epicuréia nos finais de semana. A taverna era um convento abandonado com arquitetura gótica, envolta nas brumas invernais do alto de um penhasco. Tochas e incensos tentavam dissimular os vapores do ópio e haxixe que recendiam pelas inúmeras janelas ornadas com vitrais italianos. As paredes e o teto eram tomados por vários afrescos, o que constituía um deleite rapisódico aos visitantes inebriados, sem falar da vista que se perdia pela névoa gélida à encobrir outros penhascos vizinhos.
- Dá-se com a distância o mesmo que com o futuro, um horizonte imenso, misterioso, repousa diante de nossa alma. - Richard falava com os olhos perdidos na paisagem.
- E os sentimentos nele mergulham, como os nossos olhares. - Refletiu Charllote em um de seus raros momentos de contemplação.
- És um louco Richard! Não é a lua que lá vai macilenta: é o relâmpago que passa e ri de escárnio às agonias do povo que morre... Aos soluços que seguem as mortalhas do cólera! - Manuel retrucou ao ouvir o amigo devanear com a visão pálida da lua a pratear os montes relvosos em suas lépidas aparições por entre as nuvens.
- Cólerra? Qu’importe? Não há por horra vida bastante nas veias dos homens? Não borrbulha a febrre ainda às ondas do vinho? Vin! Vin! Mon verre está vazio. - Gritou Charllote.
- Os lábios da garrafa são como os da mulher. - Disse Manoel.
- Porquoi?
- Só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou do amor os borrifa de lava.
- Mon dieu... Alors, ma bouche merrece muitos beijos. Insinuou-se a francesa com olhar sedutor e seios mais ainda querendo saltar do espartilho, ignorando assim todas as juras de amor feitas e repetidas a todo instante por Richard desde o dia em que segundo ele teve um gozo que revirou as terras do céu, moveu moléculas, interligou átomos com um poder somente dado pelo amor, o seu tóxico mais venenoso. Manoel passou o charuto com haxixe que estava fumando para Richard, ajeitou seus cabelos negros, sem graça com a expressão furiosa do amigo que mais parecia um fantasma maquiado pela ira do ciúme. Num rompante providencial, tentou contornar a situação dizendo a todos os presentes:
- Vamos ao cemitério, hoje faremos o enterro do amor, afinal de contas a vida e o amor se encontram numa garrafa de absinto, na fumaça de meus charutos, nos seios voluptuosos de uma bela cortesã... Dentre outras coisas essenciais... Vamos separá-los antes que um mate o outro, se é que um pode existir sem o outro!
A idéia se alastrou epidêmica, Richard distraiu-se com a sugestão e acompanhou o bando de desregrados morro abaixo à cantar e recitar poemas de Baudelaire, Musset, Byron... Parecia uma procissão de anjos das palavras e cânticos celestiais, envolvidos pelas artimanhas do demônio, dos vícios, celebrando seus suspiros e energias emprestados pela mocidade. Uma verdadeira apoteose da guerra e do amor, do bem e do mal que habitam no coração daqueles pobres seres sensíveis ao belo e vulneráveis às ardências carnais.
Á caminho do cemitério passaram pela loja maçônica, invadiram-na pelos fundos e roubaram as insígnias usadas nos rituais. Passaram ainda na Mortuária São João, saquearam uma urna funerária, dirigiram-se ao prostíbulo de Madame Sissí, conversaram com Eufrásia, uma das meninas da casa que tinha sérios problemas mentais e por isso andava afastada de seus afazeres e convenceram-na à participar da peça teatral que supostamente estariam ensaiando naquela noite. Saíram em romaria sinistra pelas ruas da cidade cantando a Canção do Estudante de Goethe, acordando a vizinhança para participarem do enterro do amor. Eufrásia deitada no caixão estava pálida de medo, mas a sua vontade de ganhar alguns trocados conforme fora combinado foi mais forte que o seu pavor.
Entraram em silêncio sepulcral no cemitério segundo o combinado para que pudessem ouvir a voz das almas. Por alguns minutos só se ouvia as tragadas nos cigarros de haxixe e nos charutos, além dos goles nas garrafas de conhaque e absinto.
- Ouçam! Alguém sussurrou.
- O quê?
-Não estão ouvindo? Parece um coro de vozes femininas...
-Psiu! Cala boca!
As vozes começaram a ficar mais nítidas, era um canto em latim a ecoar na noite fria do cemitério.Uma onda de calmaria tomou conta dos invasores, parecia um ritual, mas onde?
- “kirié eleizon, criste eleizon. Kirié exaudi nós, Criste exaudi nós... Santa Trinitas unos Deus, Misererem nobis”.
- Onde elas estão?
- Sumiram. Meu Deus, eram fantasmas!
Richard não tinha atenções para mais nada a não ser para a imagem diáfana de Charlotte. Parecia-lhe que ela tremeluzia como lamparina em cada gesto felinal em que seu corpo dançava por entre os tecidos transparentes de seu vestido esvoaçando-se por entre os mausoléus prateados pela lua; seu olhar narcotizado fazia com que ela se movesse lentamente ao som das madressilvas e das folhas com aromas silvestres que pisava, exalando aromas alucinógenos no ar da noite fria. Manoel parecia estar acompanhando tudo telepaticamente quando foi despertado por uma voz de criança.
- Maneco, lembras de mim? - Perguntou o dócil garoto com voz de anjo.
- Como não, meu querido? Como você está lindo... Respondeu quase a desmaiar quando reconheceu seu irmão menor que havia falecido há alguns anos.
- Que você continue amando as criancinhas, como sempre me amou.
- Deleito diante dos germens de todas as virtudes, encanta-me sua petulância tão incorrupta e íntegra; queres que eu multiplique estes sentimentos por mil? Pois bem, não será sacrifício algum.
- Ora, ora. A que devemos a honra? - Uma voz surgiu por trás de Richard e Charlotte. Viraram-se e viram dois homens que diziam ter sido amigos de Manoel e que ele escrevera seus nomes e as datas em que morreriam na parede de seu quarto. Um deles falou em tom solene:
- 1850, Feliciano; 1851, João Batista; 1852, ... Perguntem se ele já sabe quem será o próximo.
- Je pense que j’ai fumé beaucoup.
- Não, amiga, o que fumastes apenas facilitou o nosso encontro. Adeus! Despediu-se.
A pasmaria foi quebrada pelos gritos de Fortunato. Parecia um insano desesperado ao descobrir que a sua Amada Judith, uma judia israelita, motivo pelo qual o fez desistir da carreira acadêmica que seguiria em Dusseldorf, havia falecido há três dias. Fortunato acabara de chegar e estava comemorando a sua chegada e tinha planos de fugir pelo país a fora, como tinha combinado com Judith antes de partir para a Alemanha.
- Não! Não! Não partirás sem ter meus últimos beijos! – gritava enquanto cavava com as mãos. Com pedaços de lajedo da lápide improvisou uma pá e cavou até trazer o caixão à superfície. A sociedade epicuréia, atônita, assistia aquela ópera macabra, sem piscar os olhos. Uns gritavam;
- Não chores que não morreu! Era um anjinho do céu, que um outro anjinho chamou. Era uma luz peregrina, uma estrela divina, que ao firmamento voou!
- Não! Não sem meus beijos guardados há meses de travessia no atlântico... Não! - Abriu a tampa da urna; um aroma de rosas frescas impregnou o ar. Era incrível, já devia estar mal-cheiroso. Todos os olhos se arregalaram ao ver Fortunato encher o rosto pálido de Judith com beijos fervorosos. Abraçava-a, chorava, gritava com a força de todas as cordas vocais.
- Fada branca de amor, que sina escura manchou no teu regaço as roupas santas, anjo branco de Deus, que sina escura!
- Não chores que não morreu, era um anjinho do céu... - Gritavam em coro.
Neste espetáculo macabro Richard perdeu-se de Charlotte e Manoel. Saiu a procurá-los nos arredores. A lua lançava tons de prata azulada sobre os mármores frios. Richard tremia de bater o queixo.
- Também sentes frio, companheiro? - Um vulto macilento esboçava-se no ar, tomando a forma de um homem jovem vestido de preto sentado no dorso de seu corcel preto. - Na outra vida fui muito rico, era paparicado por moços e moças também abastados. Amei muito, por isso estou aqui, alhures. - Completou o jovem a apresentação.
- O que queres comigo? Não vês que já estou demasiado atormentado com minhas dúvidas? Retrucou Richard.
- Queres mesmo encontrar o que procuras? Então siga este cheiro de almíscar que vem daquele túmulo ornado com copos-de-leite... Mas, lembre-se: o viajor nos cemitérios, nessas nuas caveiras não escuta vossas almas errantes... Do estandarte medonho nos impérios, a morte leviana prostituta, não distingue os amantes. - Desapareceu no ar logo em seguida.
Richard seguiu o rastro indicado pelo fantasma e logo ouviu os gemidos de prazer de Charlotte. Surpreendeu-lhes em pleno orgasmo sincrônico; ela, a sua amada e o seu melhor amigo. Saiu correndo por entre os túmulos, chorando mais que todos os órfãos juntos ali um dia choraram. Em cada catacumba que passava, o fantasma aparecia-lhe novamente inquisidor. Richard gritou enfurecido:
- Cavaleiro das armas escuras, aonde vais pelas trevas impuras, com a espada sangrenta na mão? Quem és? O remorso? Não escutas gritar as caveiras e morder-te os fantasmas nos pés? - Inquiria por entre lágrimas e soluços.
- Sou o sonho de tua esperança, tua febre que nunca descansa, o delírio que há de matar! - Respondeu sem delongas.
Richard delirava em prantos pelas catacumbas. Enquanto isso, Charlotte e Richard, recompostos, foram de encontro ao grupo.Depararam com Fortunato ainda agarrado ao corpo de Judith. A defunta se mostrava cada vez mais, por entre os véus transparentes e rasgados pelo fervor do grande amor da sua vida.
- Meu deus! O que é isto? - Não sabiam o que fazer. Pararam estupefatos diante daquele idílio lúgubre. Manoel teve um acesso de tosse. Tossiu tanto que golfou sangue.
- Ele está tuberculoso! - Alguém gritou.
- Dê-nos sua garrafa de conhaque, homem! Queremos beber da sua morte. - Pediu um dos companheiros.
- Fiat Voluntas tua! - Manoel entregou-lhe a garrafa.
- Amem! - Agradeceu o ensandecido.
Manoel embora com fortes dores no peito, abandonou a sua fleuma costumeira para tentar acalmar Fortunato.
- Fostes tão leve e pura como a brisa matinal; a terra lhe será leve. - Tentava convencê-lo a deixar o corpo de Judith em paz.
- Perdão! Perdão pela agonia de te amar, perdão pela agonia desta noite lutulenta! - Chorava Fortunato arrumando as vestes da mais amada. Perdão, meu Deus! Perdão se neguei, meu senhor, nos meus delírios e se um canto de enganosas melodias levou meu coração! - Finalmente repousou o corpo de Judith de volta ao caixão.
- Taedet Animam mean vitae meae...!
Todos ouviram uma voz vindo de cima.
- Tadet Animam Mean Vitae Meae! Como dizia Jó: “estou cansado de viver”. - A voz reverberava numa eloqüência digna de um mestre ascenso. Era Richard em cima dos frondosos galhos do velho cipreste escondendo-se e mostrando-se por entre a cortina de cipós que despencava da árvore e lambiam o chão do cemitério; agora começavam a receber os primeiros raios alaranjados do sol frio de agosto. - Das esperanças suicidei-me rindo, no vale dos cadáveres sentei-me... Oh Judith, indolente vestal, deixei no templo a pira se apagar, morre em paz, pois em mim, tudo morreu, este sol não reluz, banha-me na friez lustral onde as almas se apuram! - Delirava Richard elegantemente vestido, depois de retirar as indumentárias maçônicas e jogá-las ao chão teatralmente.
- O que ele está fazendo? Perguntavam-se.
- Parece um trecho de uma peça que vi em Paris.
- Ele está completamente fora de si.
- E quem aqui está dentro de si?
- Já que não acordas, Judith, sirva-me de guia como a estrela oriental até o vale da morte. O céu enegreceu no oriente; rubro o sol se apagou, galopa o corcel da tempestade nas nuvens que rasgou... – Falava Richard sem ouvir os comentários dos que fitavam seus gestos.
De repente, todos ouviram um trote vindo por trás do cipreste, um cavaleiro com vestes e armas negras galopava insano em direção à multidão, era assombroso, todos se apavoraram protegendo-se como podiam; o cavaleiro das trevas passou deixando um rastro de arrepios causados pelos seus gritos medonhos. Os que ousaram olhar tudo atentamente viram quando Richard passou montado na garupa do corcel negro esboçando um pálido sorriso funesto. Quando sumiram por entre as brumas, todos levantaram as vistas saíram de seus esconderijos e depararam com o corpo de Richard balançando-se pendurado pelo pescoço envolto nos cipós.
- Non, c’est ne pás possible! Ajudem, por amor de Dieu! - Charlotte gritava enquanto Maneco tentava arrumar-lhe as roupas e esconder-lhe os seios expostos aquele bando de marmanjos. A polícia foi acionada. Manoel tentava livrar o amigo dos cipós inutilmente terminando por abandoná-lo ao perceber que não tinha mais nada para ser feito, estava morto. A correria era geral, corriam e tropeçavam nas indumentárias maçônicas que iam largando ás pressas pelo chão.
- Prenderam o filho do Promotor Balduino!
- Ah, este tem costas largas!
- Parem, parem e Eufrásia? Correram até o caixão em que a demente se encontrava e encontraram-na morta, não se sabe se por asfixia ou pavor.
- A tampa estava fechada!
- Quem foi o louco?
Corriam para safar-se dos policiais. Os poucos que foram capturados logo foram liberados por serem favorecidos pelas leis da amizade e das influências entre as famílias. O arquivo guardou o inquérito policial que atestava homicídio culposo. Mas quem seria indiciado? Quem?
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Caminhando pelas encostas do vale em que se refugiaram, Maneco tentava acalmar Charlotte.
- Querida, precisa acalmar-se.
- É um pesadelo. Un cauchemar. Vou-me embora hoje mesmo para a França.
Maneco teve um acesso de tosse até escarrar sangue novamente. Olhou para a nojeira a sua frente e disse:
- Talvez seja melhor você se tratar lá mesmo; terás mais recursos.
- Estás me dando atestado de tuberculosa?
- Sabes que é contagioso. Alertou-a.

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Nove meses depois Charlotte recebeu uma carta de uma das poucas amigas que freqüentava sua casa nos inesquecíveis saraus da cortesã. Lucíola manchou o papel da carta de lágrimas ao escrevê-la; chorava a saudade da amiga e lamentava a morte de Maneco. Ele havia sofrido uma queda de cavalo a qual lhe causou um tumor na fossa ilíaca, agravado pela fragilidade imposta pela tuberculose já avançada.
Os olhos de azuis de Charlotte enchiam-se com a beleza divina do sofrimento que a tornava mais frágil e sensível que um cristal de pureza inefável; as lágrimas caíam-lhe generosamente pelas maçãs pálidas levemente enrubescidas pelo ar fresco da manhã que invadia os vales iluminados pelo sol primaveril, enchendo os arredores de paris com camélias, flores-de-lis, petúnias. Fechou os olhos ao contemplar as flores e ouviu a voz de Richard sussurrar-lhe: “Quando a morte á tão bela... é doce morrer! Quero de amor viver no teu coração, sofrer e amar essa dor que desmaia de paixão”.
Não sabia se tinha realmente ouvido a voz de Richard ou se as lembranças que tinha dele materializaram as suas palavras.
Olhou pela janela da casa em que fazia o tratamento para tuberculose e viu uma senhora acompanhada por seus filhos adolescentes atravessarem a rua para ir á padaria. Sentiu uma vontade imensa de fazer o mesmo que aquela senhora, algo tão simples que agora lhe era tão caro. Logo ela que cruzara oceanos em busca de aventuras se emocionava agora com o cotidiano mais prosaico que se possa imaginar para uma dama do mundo; uma dama por quem se merece morrer, mesmo em mais tenra idade.




terça-feira, 21 de abril de 2009

A CHUVA DA NOITE JUBILOSA


A CHUVA DA NOITE JUBILOSA (para Nicinha Brandao, a minha Rainha)

Do céu plumbeo da America do Norte,
nessa noite longa do dia vinte de abril,
uma chuva umedeceu como uma sorte
O meu terreno de lembranças do Brasil.

Uma mulher divina dançava nas alturas.
Com a sua tênue alegria das mais puras,
aspergia sobre as futuras inflorescências
lagrimas entornadas em outras essências.

As casas vizinhas com telhados aquosos
acenaram com lentos brilhos noturnos.
As musicas nobres de tons suntuosos,
soaram abafando os barulhos diurnos .

Dorme, querida, em suas pétalas deitada!
Crescerao seus brotos na terra molhada.
Desperta, amada, em suas asas exaltada!
Surgirão belos frutos depois da estiada.


SergIo Brandao, na noite do dia 20 de abril de 2009 quando a protagonista desta estória estaria nos dando a graça de estar conosco por 80 anos.Na eternidade seriam oitenta segundos? Talvez...
Brighton, 20 de abril de 2009.

sábado, 18 de abril de 2009


COMO PARTICIPAR DA ALQUIMIA? (dedicado ‘a Oscar Wilde)

O quarto se enchia de preguiça
Enquanto a noite se debruçava,
Os seus longos cabelos soltava,
Esvoaçando-se no frio da briza.

As suas silhuetas eram infinitas
Em horas se mostravam luminosas
Em outras, nos orvalhos de rosas
As lagrimas ficariam mais bonitas.

Nos mesmos contornos desta dama
A nos esperando com o raiar do dia
Somente se faz parte desta alquimia
Aquele que a luz acesa em si emana.

Sergio Brandao, Allston (Ma) 25 de setembro 2008.

segunda-feira, 13 de abril de 2009


WILLIAM BLAKE E RAULZITO.
Se a formiga so trabalha
Porque nao sabe cantar.
Qual seria a maior batalha
Qual delas eu hei de amar?
Alguns as vêem conjugadas
(cada amor no seu tempo)
em cada uma das estradas
cada um no seu momento.
Os olhos do ninja cantam
Enquanto a beleza trabalha
Os gestos belos encantam
(da leve bailarina cansada.)
Da cigarra eu quero alegria
da formiga a forca quero.
Chegara ao fim o nosso dia
Oh Lua, como Eu te venero.
Beijo em beijo a beija- flor
A trabalhar seu doce sugar
canta com o mesmo louvor
(A sua musica e o seu voar...)
Rios cantam na correnteza
Como William Blake e Raulzito
E no mistério e na proeza
Que cantam o poeta e o mito. SERGIO BRANDAO Brighton (Ma) 13 de abril 2009.

sexta-feira, 10 de abril de 2009


GALILEU NÃO CONHECIA QUASARES.
Ouve-se uma musica abstrata
a cada ato de nossa presenca.
O Grito mudo, a morte inata
Todos os ritos da nossa crença.

Galileu dizia sobre as estrelas
mesmo sem medir quasares.
As cores e as diversas belezas
São como ondas sobre os mares...

Seus beijos na lua despida,
os olhos molhados de mar,
tudo carrega o som da vida.
Ate o cheiro de ervas no ar.

Nem todos os ouvem porem,
(são tampados ouvidos da alma)
o som abstrato não lhes convem:
sao seres que perderam a calma.

Somente os olhares do alem
Nos conduzirão ao certo porvir.
Isso e uma chaleira ou e um trem?
De cada imagem podemos ouvir. SERGIO BRANDAO, Brighton (Ma) 10 de abril de 2009.

quarta-feira, 8 de abril de 2009


O VELHO PALHACO ( Dedicado a Charles Baudelaire)
“Et,m’em retournant, obsede par cette vision, je cherchais a analyser ma soudaine douler...L’image du vieux poetsans amis, sans famille,sans enfants,degrade par as misere
et par l’ingratitude publique, ET dans La baraque de qui Le monde oublieux NE veut plus entrer!”
C.Baudelaire na prosa poética...Le vieux saltimbanque.

Era uma feira repleta de sonhos
em um vilarejo de seres sutis,
a cadela ruiva de riso bisonho
acenava latindo a caravana feliz.
Era uma linda tarde de outono.
Um dia de festas, roupas e fogos
Mágicos, trapezistas, ciganos
Fazendo jubilar jovens e idosos.
Uns gastavam, outros ganhavam,
outros bebiam enquanto flertavam.
Prostitutas, maçons, padres e beatas
A festa era mista, todas as castas...

Atras de uma tenda, isolado do povo
havia um palhaço com cara de choro
-ninguem mais queria, nem mesmo sorria
Das suas mancadas, das suas folias.
(inúmeros gritos, quanta alegria)


Já não se vê mais a sua proeza
Velho, perdeu o que o movia:
Não causa mais risos, inexiste beleza.
Sozinho, sentado, esquecido dos seus,
So lhe resta agora um belo consolo
-lembra das horas que brincava de Deus.
(viveu a gloria de ter sido um bobo)
Na tenda enfeitada ficou o palhaço.
Sem brilho, sem palmas (o coro e o osso)
O seu coração era um so estilhaço
de vidas alegres no fundo de um poço.

Sergio Brandao, Allston...2007 ????

domingo, 5 de abril de 2009


AOS QUE NUNCA VIRAM ALMAS DECREPITAS
Se vos achardes impróprio termo:
“decrepitude na pré-velhice,
Onde a chamado do anjo e ermo
E vai se perdendo na canalhice...
E se achardes inadequado
A quem das letras e impostor
(com lume falso reluz o bardo),
pensa que e poeta o enganador.
Se por acaso o verniz – cinismo
encobre ainda a patológica,
degenerando com seu abismo
o inexplicável e a sua lógica...
E se ainda achardes também
que o escritor tem que ser maldito
as hordes do mal dizendo amem
para nos livros ficar bonito)...
Um veredito te dou agora:
A cerebral e conseqüência,
Mas a da alma e qualquer hora!
Não se enganes com eloqüência.
Walt Whitman chamou outrora
(a luz do alto tem paciência...)
Cai lentamente, como a aurora
E anda junto com a inocencia. Sergio Brandao, Allston, 2008.

quinta-feira, 2 de abril de 2009


O TRIO ELETRICO
Quando eu era uma crianca,
para minhas unhas cortar,
usando a minha confiança
Mamae me fazia imaginar.

Sabia, dizia (e eu acreditava):
preste muita atencao a rua,
o trio elétrico vira com a lua!
So assim eu me aquietava.

Ela conseguia essa quietude
enquanto o Lúdico crescia,
sonhavam Onirico e a Virtude
brincavam Realismo e Magia.

O trio elétrico nunca passou
naquela tarde tão distante.
Algo melhor porem, chegou:
A Imaginacao se fez gigante...

A semente por ela plantada
Como o Cedro cresceu forte
projeta a sombra na calcada
enquanto Luz dissipa a morte.
Hoje essa alma inquieta
ainda sonha com o porvir.
Tendo o Belo como meta,
Espero o Triste se redimir.

Sergio Brandao, Brighton (Ma), 02 de abril de 2009.